Por uma imprensa responsável

 

Por uma imprensa responsável

Em 19 de abril de 2007, após decisão tomada na reunião do Conselho de Escola do dia anterior, apresentamos à Promotoria de Justiça de Defesa dos Interesses Difusos e Coletivos da Infância e da Juventude da Capital uma Representação contra a Rádio Jovem Pan. Em vinhetas veiculadas entre 09 e 16 de abril, houvera sido entrevistada aluna da escola com supostas dificuldades de leitura – e eram veiculados tanto o nome da criança quanto da escola. Nós entendemos à época, como ainda entendemos hoje, que havia falha grave da emissora em nominar a criança e a escola onde estuda, de maneira a permitir fosse identificada, visto que a vinheta a tratava, no nosso entender, de forma altamente desabonadora. A Representação virou Inquérito Civil, a Rádio foi instada a se manifestar, e nós fomos convidados a melhor esclarecer nossas ponderações iniciais. Finalmente, em 09 de agosto de 2007 a Promotoria comunica-nos que houvera entendido que a veiculação das vinhetas não configurava crime de imprensa, arquivando o inquérito.
Acesse:

Transcriçaõ da vinheta Rádio Jovem Pan

Locutor 1: Um progresso na educação precisa ser reconhecido. É muito difícil encontrar uma criança fora da escola.

Repórter: E você estuda também?
Mulher 1: Estuda, mas não sabe ler.

Locutor 1: Estuda, mas não sabe ler. A frase é repetida pelas mães com uma freqüência assustadora nos bairros próximos do centro de São Paulo.

Repórter: N., 9 anos, onde que você estuda?
N.: No Amorim Lima.
Repórter: Amorim Lima. Pra que ano você passou agora?
N.: Quarto.
Repórter: Cê sabe lê o que está escrito aqui na porta do carro?
N.: Sei. Rá-pi … rapidinho.
Repórter: Rádio.
N.: Ah. É.

Menino: A tem-pe-ra-tu-ra do pra-pra… pra-neta es- estão supindo… supindo ao..alémdo universo.
Repórter: E isso que você leu você consegue explicar o que que é?
Menino: Não.
Repórter: Cê já vai fazer a quarta de novo agora!
Menino: Ahã.
Locutor 1: Quando uma criança chega à quarta série lendo desse jeito, os livros didáticos se transformam num verdadeiro enigma.

Repórter: E livro, assim. Que livro que cê já leu?
Menino: Eu não gosto ler livro, não. Só de escola quando a professora dá pa lê.
Repórter: Mas ela dá pra lê, por exemplo, livro de historinha ou só é o livro da aula?
Menino: É livro da aula. De historinha, só a professora de Artes dá.

Repórter: Essas letras grandes, você sabe qual é uma letra daí?
Menina: Eu não consigo lê assim.

Repórter: E como você faz pra estudar geografia, ciências?
Menina: A professora dá… é… dá um negócio assim tipo da primeira série.
Repórter: Quantos anos você têm? E em que série você está?
Menina: Eu tenho nove. Eu tô na quarta.

Locutor 1: Há quatro anos essa aluna estuda as matérias da primeira série, só que está na quarta, e sem nenhuma esperança de recuperar o que perdeu até agora. Nossas crianças não podem ser condenadas a esse tipo de educação. Semente do amanhã, alicerce da pátria.

 

Ao Ministério Público do Estado de São Paulo

A/C Procuradoria de Interesses Difusos e Coletivos

Prezados senhores

O Conselho de Escola da Escola Municipal de Ensino Fundamental Desembargador Amorim Lima, situada no bairro do Butantã, em São Paulo, vem, através de seu presidente Luis Gonzaga Braga Filho, RG 8.657.029-8 e CPF 006.216.398-18, e após deliberação em Assembléia Extraordinária realizada em 18/04/07, respeitosamente apresentar-lhes a seguinte representação:

1) A Rádio Jovem Pan AM vem realizando, há alguns meses, uma série de reportagens sobre o ensino nas redes públicas de ensino em São Paulo (disponíveis no endereço www.jovempan.com.br), em que são entrevistados alunos de diversas instituições. Nessas entrevistas não são, normalmente, identificados nem a escola nem o aluno.
2) Durante a semana de 09 a 16 de abril corrente a Rádio veiculou, várias vezes por dia, matéria montada com diversos trechos de supostas entrevistas em que são apresentados o nome da menina N., de 9 anos, aluna da escola (transcrição aproximada anexa) e o nome da escola. A matéria é altamente depreciativa tanto no que se refere à escola quanto no que se refere à aluna.
3) O Conselho de Escola entende que, além dos prejuízos que a matéria pode causar à aluna, especificamente, a reportagem é irresponsável e leviana, e altamente perniciosa à totalidade dos alunos da EMEF Desembargador Amorim Lima. Outras crianças são entrevistadas – sendo ressaltadas suas supostas dificuldades de leitura – sem identificação, fazendo crer que estudam também na EMEF Amorim Lima. Tendo a escola cerca de 860 alunos, não fica absolutamente transparente na matéria qual o critério que levou a reportagem a buscar essa estudante especificamente.
A EMEF Desembargador Amorim Lima é uma escola absolutamente aberta à comunidade. O esforço de melhoria da escola, empreendido já há alguns anos pelos corpos técnico e docente, pelos pais e pelos alunos –além de dezenas de profissionais voluntários das mais diversas áreas – tem suscitado visitas numa freqüência inusual, que nos fizeram, inclusive, criar um Grupo de Responsabilidade exclusivamente para recebê-las. A escola já foi visitada por grupos de estudantes e professores de pedagogia de vários estados brasileiros e inclusive do exterior. Foi objeto de dezenas de matérias na imprensa diária e especializada, foi bloco do programa Globo Repórter de novembro de 2005 e, nesta semana em que estamos, foi detalhadamente filmada para programa da Rede Futura, que irá ao ar no próximo sábado. Houvesse interesse da Rádio Jovem Pan em conhecer o trabalho da escola e a reportagem seria recebida por um grupo de estudantes que lhes haveria de mostrar a escola como ela é: com problemas, mas imersa num enorme, contínuo e coletivo esforço de melhoria.

Nesse sentido, o Conselho de Escola vem solicitar a esse Ministério que empreenda seus melhores esforços no sentido de esclarecer:

a) Quais os critérios utilizados para a escolha da aluna a ser entrevistado, e como a reportagem chegou até ela.
b) Se os outros alunos entrevistados na mesma reportagem são também alunos da EMEF Amorim Lima. Não sendo, por que motivo a reportagem não deixa isso claro, e faz parecer tratar-se de alunos da Amorim Lima, única escola citada na reportagem.
c) Se, em outras reportagens, não são citados nem os alunos nem a escola, qual a motivação que fez a produção da rádio explicitar nesta reportagem tanto um quanto outro. Cabe aqui ressaltar que na quarta-feira, 11/04, o Sr. Gilberto Frachetta, ex-presidente do Conselho de Escola da EMEF, entrou em contato com a produtora do programa, Sra. Renata Peribelli – que lhe disse que “o nome escapou”, mas que não tomou providências e permitiu que a reportagem continuasse sendo veiculada até 15/04.

Assim, considerando que a reportagem – mais uma vez: leviana, maldosa, irresponsável – desrespeitou e ofendeu a totalidade dos alunos da escola; desconsiderou o esforço e o trabalho empreendido por toda uma comunidade; manipulou as entrevistas e declarações no sentido de fazer parecer tratar-se de alunos da EMEF Desembargador Amorim Lima crianças que não o são; e ainda no sentido de defender a escola pública, de forma geral, de interesses subalternos travestidos de reportagens supostamente de cunho social, vimos solicitar a esse Ministério que nos auxilie na promoção das seguintes reparações:

a) Que, ao se confirmar que a reportagem em questão deixou transparecer tratar-se de alunos da EMEF Desembargador Amorim Lima crianças que não o são, seja da Rádio Jovem Pan exigido um pedido formal de desculpas aos alunos da escola, com a mesma freqüência, nos mesmos horários e na mesma duração das reportagens veiculadas.
b) Que a Rádio Jovem Pan seja intimada a mostrar, além das mazelas, os variados esforços coletivos que estão sendo empreendidos no sentido de melhorar a escola pública em São Paulo, realizando uma série de reportagens – longas e honestamente pautadas – sobre elas. A reportagem na EMEF Desembargador Amorim Lima deveria minimamente acompanhar:
• Uma reunião completa do Conselho Pedagógico – em que se reunem semanalmente, fora do horário de trabalho, a diretora da escola, três professores, a coordenadora pedagógica, dois intelectuais voluntários, o mestre de capoeira e dois representantes dos pais, a fim de pensar e coordenar a implantação das linhas pedagógicas da EMEF.
• Uma reunião dos representantes dos Grupos de Responsabilidade da escola, em que as crianças, a partir da segunda série, fazem-se cargo de responsabilidades específicas tais como Recreio Legal, Boa Vizinhança, Visitas, etc. Caberia também acompanhar uma reunião dos coordenadores desse grupo – alunos das 7as. e 8as. séries da escola que, fora de seu horário de aula, coordenam o trabalho dos representantes.
• Uma reunião do Conselho de Escola.
• O enorme trabalho de concepção e construção dos Roteiros Temáticos de Pesquisa, elaborados pelo professor Geraldo Tadeu Souza, doutor em lingüística pela Universidade de São Paulo, contratado pela escola em regime de dedicação exclusiva e para quem se está tentando obter uma bolsa de pesquisador residente. Além das atividades de pesquisa que são o cerne do nosso Projeto Pedagógico, deveria a reportagem acompanhar as variadas atividades do dia-a-dia da escola: as oficinas de artes; a oficina de capoeira; a oficina Estação Butantã, que no ano passado realizou com os alunos das 1as. séries 17 passeios pelo bairro; a oficina Vigilantes da Natureza.
• Caberia ainda destacar as melhorias conseguidas através de parcerias e do esforço da comunidade: a biblioteca, em ambiente agradável, com seu acervo em processo de total informatização graças ao esforço de mães e voluntárias; a Casa de Cultura Guarani / Opy Guasu– provavelmente o único espaço consagrado pelo povo guarani numa escola pública em todo o país; o forno caipira e Espaço Cora Coralina; a sala de informática, funcionando em parceria com empresa privada; o laboratório de fotografia, em construção graças ao esforço de pais; as aulas de educação física, sendo ministradas por faculdade privada numa parceira com a escola; a parceria com o Centro de Saúde Escola do Butantã; a parceria com o Parque Zoológico de São Paulo, que fez da Amorim Lima a escola-piloto num projeto de aproximação do Zoológico com as escolas públicas de São Paulo; a parceria com Centro de Atenção Psico-Social? do Butantã e com o Instituto Moreira Sales, que envolverá pacientes do Caps e pais de alunos da escola; o trabalho do Grupo de Estratégias Especiais em Educação, empreendido por 5 psicólogas voluntárias. Caberia ainda à reportagem da rádio deslindar os motivos que levaram a EMEF Desembargador Amorim Lima ser considerada Ponto de Cultura pelo Ministério da Cultura, e ser agraciada com a Salva de Prata, conferida pela Câmara Municipal de São Paulo.

Agradecendo muitíssimo sua atenção, subscrevo-me,

Atenciosamente

Luis Braga
Presidente do Conselho de Escola
EMEF Desembargador Amorim Lima

À Promotoria de Justiça de Defesa dos Interesses

Difusos e Coletivos da Infância e da Juventude da Capital

A/C Excelentíssimo Sr. Dr. Motauri Ciocchetti de Souza

Ref. Of. No. 3947/2007
IC No. 219/2007

Prezado Senhor

Concernentemente às alegações da Rádio Panamericana S.A. que nos foram encaminhadas através do Ofício em epígrafe, gostaríamos de respeitosamente ponderar-lhe que em nada contradizem as afirmações de nossa Representação inicial – bastante pelo contrário: reforçam-nas. Se não, vejamos:

1) A defesa da emissora centra-se na afirmação de que seria a vinheta objeto da Representação uma prestação de serviço, cujo interesse público haveria de justificar tanto a citação do nome de crianças quanto de escolas. Não obstante o evidente equívoco da asserção, pois, como se verá a seguir, não há como admitir que a pretexto de prestar serviço vulnerem-se garantias fundamentais e direitos indisponíveis, parecem oportunas algumas reflexões preliminares. Em primeiro lugar, cabe refletir que, fossem as vinhetas algo a que se poderia definir como matéria jornalística, delas haveria de se poder esperar: ou um conteúdo predominantemente informativo; ou um trabalho investigativo sério; ou finalmente um esforço de análise que relacionasse dados concretos e contextualizados, à luz de um mínimo de racionalidade. Nenhuma dessas vertentes foi minimamente resvalada pela emissora – nem na vinheta 5, objeto da Representação, nem nas outras tantas que a Emissora veiculou.

Quanto à vertente da informação: não há, nas vinhetas veiculadas, a apresentação de uma única informação concreta que pudesse oferecer ao ouvinte a possibilidade de formar um quadro mais claro e mais preciso da Educação nem na cidade nem no país. Não são apresentados quaisquer dados relevantes; não é feito nenhum esforço comparativo; as reportagens/vinhetas não são iluminadas por nenhuma informação relativa aos sistemas ou às políticas de educação; não são ao menos diferenciados os sistemas municipal e estadual de ensino – naturalmente coordenados por políticas e submetidos a legislação diferentes. Não se fala de número de alunos, de verba, de salário – em suma, há de se concordar que a preocupação e a ênfase das vinhetas não são, absolutamente, informar.

Quanto a serem as vinhetas fruto de jornalismo investigativo: não há uma única busca de causa primária, um único esforço de avançar para além de observações pueris. Não há o mínimo compromisso não só com a Educação, mas com a racionalidade. Nesse sentido a Vinheta 10 é emblemática. Afirmações do tipo: “Na capital paulista é comum encontrar alunos da quarta série com dificuldades para entender a cartilha…”; ou, referindo-se a Brasília: “Uma aluna que chega à quinta série lendo assim é um caso grave, mas não é comum em Brasília…O mais comum é que as crianças só passem para a segunda série depois de aprender a ler e a escrever…”. “Em Recanto das Emas e Estrutural, cidades satélites de Brasília, o mais comum é que alunos da quarta série saibam ler textos adequados à idade. Na capital paulista, é comum que os alunos da mesma quarta série leiam com dificuldade a cartilha da primeira série.” Tratar a Educação nesses termos é um escárnio. O que a emissora quer dizer com termos como comum, e mais comum? Depreende-se inequivocamente que em São Paulo a reportagem saiu do estúdio convencida de que a Educação é ruim, e foi à cata da matéria que atestasse essa convicção. Em Brasília, sabe-se lá por que, saiu convencida de que a Educação é de qualidade e, ao deparar-se com aluna que apresenta a mesma suposta dificuldade de leitura que os alunos de São Paulo, diz que isso não é comum… Então cita, para desqualificar, que o MEC dá notas parecidas às duas cidades – ou seja, o único dado que foi obtido com um mínimo de racionalidade, com critérios minimamente científicos, é desqualificado para reafirmar a convicção que em Brasília a educação é de qualidade, e em São Paulo não é. A reportagem não busca absolutamente algo que já não soubesse – ou julgava saber. O ato investigativo requer que, a partir de uma hipótese previamente formulada, se vá a campo com a possibilidade tanto de comprová-la quanto de refutá-la. Tratar a questão com a displicência e com o descaso expressos em comum, mais comum, é obviamente acomodar o dado à hipótese – ou seja, um método, digamos, pré-científico. Comum, para a Emissora, o que seria, numa escala mensurável: 50%? Mais comum seria, digamos, 60%? Não sabemos. Talvez seja uma terminologia interna da Emissora – de todo o modo, não é forma de investigação aceita pelo menos desde a Idade Média.

Verifiquemos, finalmente, se as tais vinhetas poderiam ser consideradas fruto de um esforço analítico – ou seja, um ato não de investigação, não de informação, mas de pensamento. Mas, haveria pensamento embasando as vinhetas? Pensamento é faculdade de concatenar idéias, de formular conceitos, de estabelecer relações. Nenhum pensamento, nem num sentido bastante largo do termo, haverá de ser encontrado na vinheta 5, objeto da Representação – assim como nas demais. As afirmações e as falas esparsas veiculadas em nenhum momento dialogam com a vasta bibliografia e a vasta pesquisa referentes à Educação no Brasil. Das várias linhas, das várias interpretações, dos variados esforços de superação e de construção de uma Educação de qualidade no Brasil, nenhum é citado. Nem um único autor; nenhuma hipótese de causa; nenhuma sugestão de caminho a ser seguido: definitivamente, as vinhetas objetos da Representação não são, nem de longe, frutos de um esforço de pensamento.

Se não informou, se não investigou, se não analisou, como pode a Emissora alegar que presta serviço de interesse social? Que interesse social pode haver no gosto – convenhamos que um tanto perverso – de submeter crianças e adolescentes a situação de constrangimento?

2) A Representação apresentada a esta Promotoria foi concebida e preparada no âmbito do Conselho de Escola da EMEF – que a Emissora possivelmente não sabe o que seja, e que pois convém relembrar: a instância deliberativa máxima da escola, amparada pela lei e formada paritariamente por professores, pais, alunos e equipe técnica, democraticamente eleitos por seus pares. O Conselho de Escola é hoje, inclusive, presidido por pai de aluno. A afirmação da Emissora – empresa privada – de que a escola estaria “pretendendo utilizar a Nobre Instituição do Ministério Público de São Paulo para seus interesses privados de promoção.” é, pois, além de uma tentativa canhestra e torpe de desviar o foco da questão, uma afronta não só à comunidade da escola, mas à inteligência de quem lê. Como admitir que uma escola pública, absolutamente PÚBLICA, que se apóia e é orientada por políticas públicas, absolutamente aberta à comunidade, com seu pensamento, sua trajetória, suas reuniões e suas atas abertas e públicas, possa utilizar o que quer que seja em interesse privado – quanto mais de promoção? Estaríamos querendo nos promover com qual intuito privado? A emissora poderia precisar? Quereríamos obter mais alunos? Ou alguns de nós estaríamos buscando auferir lucro pessoal? É isso uma denúncia ou mais uma afirmação retórica, vazia e sem nexo, como as que compõem as resenhas? O que a Emissora não concebe é que uma entidade pública – uma escola de um dos bairros modestos da Capital, como a chama – venha solicitar a proteção do Ministério Público para fazer cessar as agressões a seus alunos e a toda sua comunidade, e determinar as reparações cabíveis. A falta de cuidado e de compromisso adotada pela Emissora no caso faz denotar claramente que julgava tratar-se de gente incapaz de um esforço de reparação. A Emissora em nenhum momento cita de forma desabonadora um político, um secretário, um membro de governo – uma pessoa, enfim, com poder. A reportagem busca crianças – e ainda mais: dos Bairros mais modestos da Capital. Tivesse a Emissora o interesse – e a coragem – de fazer reportagens sobre o ensino privado e, caso entrevistasse algum de seus alunos, haveria de cercar-se de todo o cuidado, de todo o esmero. O que a Emissora não admite é que pode haver defesa de interesse que não seja privado: que a comunidade de uma entidade pública pode – e se tem compromisso deve – exigir ser tratada, e trabalhar para que seus membros sejam tratados, com dignidade. O fato de a Emissora afirmar que não houve discriminação quanto à escola reclamante não a exime da obrigação de tratar a EMEF Desembargador Amorim Lima, bem como todas as outras, com seriedade e respeito. É um escárnio afirmar que “In casu, ocorreu a citação ocasional da escola, ora reclamante”. A produção foi alertada na quarta-feira da semana da veiculação, mas a vinheta prosseguiu sendo divulgada até o domingo. A questão, séria, importantíssima, que está em jogo é: a comunidade de uma escola pública tem o direito de orgulhar-se dela, de defendê-la, de entendê-la digna? Por que uma mãe que leva seu filho a uma escola pública – ou por tê-la escolhido ou por ser a única que lhe pode oferecer – e que se esforça por melhorá-la, tem que aceitar que seu filho ouça na Rádio Panamericana que “está sendo condenado a esse tipo de educação”? Se, como admite textualmente a Emissora, a escola não foi objeto de uma pesquisa jornalística de grande fôlego, com que direito veicula matéria que a cita? O direito à seriedade de modos e métodos devem ser reservados a uma certa classe, a uma certa clientela?

Aqueles que nos esforçamos por construir uma escola pública de qualidade sabemos que esse esforço deve contemplar duas vertentes: a melhoria da escola propriamente dita, e a melhoria da representação que a sociedade, os alunos, os pais, têm dela. O aluno que se dirige à escola convencido de dirigir-se à cloaca do mundo está prejudicado, estabelece um vínculo negativo com o aprendizado e com a escola e, naturalmente, tem mais dificuldades para aprender. Não se trata de esconder os problemas que a escola tenha e tem – os alunos, os pais, sabemos naturalmente bastante bem dos problemas e das dificuldades, pois que os vivemos – trata-se de criar a capacidade de reconhecer e utilizar os recursos que se tem, e de se criar a consciência de que as dificuldades são superáveis. A Rádio Panamericana por acaso julga que as vinhetas servem de informação sobre a qualidade de ensino para nós que justamente freqüentamos a escola pública? Não há cabimento nessa suposição. Quem freqüenta a escola a conhece, sabe de seus problemas e de suas dificuldades. Às autoridades, então, as vinhetas seriam dedicadas? Bem menos, hipótese absurda – as autoridades que não sabem do estado da Educação não o saberão ouvindo a Rádio Jovem Pan, ou qualquer outra. A quem as vinhetas se destinam e a que servem, pode-se constatar lendo, por exemplo, Educação: Temas Polêmicos, do Prof. José Mário Pires Azanha, entre tantos outros. As vinhetas da Rádio Panamericana são mais algumas pérolas que vêm inserir-se no longo colar de um movimento que começa no Brasil nas décadas de 1960 e 1970 e que perdura até hoje como resistência ao esforço de universalização do ensino – ou seja, como crítica à expansão do ensino público à totalidade da população brasileira. O movimento – bastante consciente para uns, menos consciente para outros – é o de desqualificação e desmantelamento do ensino público . As vinhetas, sejamos francos, se não são informação, não são investigação, não são análise, então chamêmo-las pelo nome: são propaganda. A ligeireza, a ausência de análise e de dados mensuráveis, a inexatidão de termos, a que se empenham é a reforçar uma sensação, uma doxa, um consenso, (assim como o define o pensador Noam Chomsky): “A escola pública é ruim, a escola pública é ruim, na escola pública não se aprende, na escola pública não se aprende” – são frases repetidas como um mantra. Por que é ruim, no quê está ruim, como pode melhorar, não são, obviamente, preocupações da Rádio Panamericana S.A. O interesse público da rádio é repetir o mantra. É criar e difundir um consenso que, por não buscar causa ou motivo, por não distinguir nuance, por não responsabilizar ninguém em especial, tenta equiparar o estado da Educação Pública a um ato da Natureza. O consenso cria fatos – que, por sua própria essência, são incontestáveis. A Escola Pública é ruim, chove, amanhece, a semana tem sete dias – são “fatos” da mesma ordem, da mesma natureza. Depois, criado o consenso, incitar à indignação contra algum desses fatos pode render audiência ou outros dividendos, mas não fará chover, assim como não melhorará em nada a Educação Pública da cidade ou do país.

Não obstante tudo o quanto até aqui apresentado, não se pode perder de vista o real objeto desta Representação, que visa única e exclusivamente a preservação de direitos fundamentais e indisponíveis dos alunos da EMEF Desembargador Amorim Lima. Isso porque, não se pode permitir que, a título de informar ou apontar possíveis deficiências dos sistemas educacionais, sejam estigmatizadas as crianças e adolescentes que de forma maliciosa ou desleixada foram indevidamente identificadas nas reportagens, ou que sejam indiretamente identificáveis pelas informações nelas reproduzidas. Não há como permitir que se condenem as crianças identificáveis nas vinhetas à baixa auto-estima e ao conformismo que insistem em lhes impingir. Aliás, mesmo que não houvesse sido identificada nenhuma das crianças abordadas pela reportagem, ainda assim não se poderia permitir que toda a coletividade dos alunos matriculados nas escolas públicas de São Paulo sofram pecha ou rotulação negativa de qualquer espécie, nem mesmo sejam expostos ao ridículo e ao escárnio. Ora, o próprio Ministério da Educação propugna, nos seus Parâmetros Curriculares Nacionais, como um dos objetivos a se esperar dos alunos no ensino fundamental: “compreender a cidadania como participação social e política, assim como exercício de direitos e deveres políticos, civis e sociais, adotando, no dia-a-dia, atitudes de solidariedade, cooperação e repúdio às injustiças, respeitando o outro e exigindo para si o mesmo respeito”. Como, então, permitir que os esforços que todos nós empreendemos pela construção da cidadania sejam solapados pela veiculação de matéria jornalística leviana e irresponsável?

Assim, firme na convicção de que não é justa, razoável ou constitucional a agressão a direitos indisponíveis de crianças e adolescentes matriculados em escolas públicas de São Paulo, especialmente os da EMEF Desembargador Amorim Lima, é que o Conselho de Escola reafirma sua confiança de que esse Órgão Ministerial possa coibir a prática das irregularidades constatadas e estabelecer a reparação dos direitos lesados, determinando:

• Que a Rádio Panamericana S.A. admita (como aliás sua advogada já o fez) – na mesma freqüência e nos mesmos horários das veiculações em que estivemos envolvidos – que, ao permitir que a EMEF Desembargador Amorim Lima fosse citada em vinhetas que a Emissora levou ao ar de 9 a 16 de abril do corrente ano, o fez sem ter avaliado detidamente o trabalho da escola.
• Que, na mesma veiculação, a Rádio Jovem Pan admita que as vinhetas eram observações genéricas, e que não teve a pretensão, nem tem competência técnica, para avaliar o desempenho de alunos, nem bem menos de instituições de ensino. Que as matérias foram feitas sem critério estatístico e sem cuidados metodológicos, e não servem de elemento para se avaliar nem as crianças e instituições citadas, nem os Sistemas Públicos de ensino em São Paulo.
• Finalmente, entendemos que seria desejável que a Emissora fizesse um pedido formal de desculpas às crianças que se expuseram nas vinhetas.

É o quanto tínhamos a ponderar.

Reiterando nossos protestos de estima e respeito, subscrevêmo-nos,

Atenciosamente

 
Luis Braga
Presidente do Conselho de Escola da
EMEF Desembargador Amorim Lima
Redação aprovada em Reunião Ordinária do CE de 01/08/2007

Sobre o tema, leia o excelente Escola Pública e Imprensa Neoliberal, de Loraci Hofmann Tonus, HD Livros Editora, Curitiba, 2001.