Setor 3 – 11 de agosto de 2006
Projeto em escola pública demonstra que ensinar pode ser diferente
Juliana Rocha Barroso e Roberta Santana
Os muros que dividiam o espaço em salas foram derrubados. Crianças de sete a 14 anos, juntas nestes grandes salões e espalhadas por todos os outros cantos, auxiliam umas às outras no desafio de atingirem objetivos que elas mesmas escolheram. Um mundo de descobertas que elas têm que desvendar. E gostam assim. Sem sinal. Aulas expositivas, só quando realmente necessário. Esta é a descrição de uma escola. E o mais incrível: brasileira e pública. Ela nasceu há dois anos, apesar de completar seu qüinqüênio este ano. "É como quando a gente aprende um jogo novo. Com o tempo, a gente pega o jeito", explica o aluno da 5ª série, Natan, que, como muitos outros passou pela transição. Acompanhado da tutora, Terezinha Maria da Silva, Natan, Nicolas e Sabrina, os três com 11 anos, nos conduziram a este universo, em que todos são aprendizes e nos contaram o que tem de diferente na sua escola.
Tudo começou há oito anos quando o conselho de escola, sempre atuante da EMEF Desembargador Amorim Lima - zona Oeste de São Paulo -, questionou problemas que considerava sérios e que refletiam diretamente no desempenho dos alunos. As mudanças foram sendo construídas na perspectiva da participação, a comunidade foi se interando da escola e dando conta do que queria como educação, o que achava importante para seus filhos. Um dos problemas era o recreio. Apenas quatro funcionários, em um percurso das 8h às 23h, acumulavam funções como fazer a merenda, limpar a escola e acompanhar o recreio. As crianças se machucavam, tinha muita briga. A proposta foi que as mães ajudassem neste horário. "Na medida em que as mães começam a olhar a escola, começam a ver um monte de coisas, que levaram para o conselho de escola de outro jeito. Foi um momento muito difícil dentro da escola, porque a comunidade via questões que a escola de fato não dava conta e ela queria resultados imediatos", conta Ana Elisa Siqueira, diretora do Amorim há quase dez anos.
Outro problema: a freqüente falta de professores. Algumas crianças entravam às 8h e saiam ao 12h, sem ter tido aula nenhuma. Quando o problema ia para o Conselho, a escola falava da indisciplina dos alunos, e os pais traziam as faltas dos professores. "Como que a gente resolve esta confusão? Os professores que vinham pegavam meninos que durante o dia tiveram muito de tempo livre. Isso cria uma indisciplina muito grande", conta. Este círculo vicioso levou ao questionamento dos pais em relação ao projeto político pedagógico da escola. "Eles perguntavam: quem tem desrespeito com quem? A indisciplina é de quem?", relembra Ana. Ela conta que um grupo menor com representatividade de todos os segmentos começou a estudar os problemas. A primeira coisa que fizeram foi mapear as ausências dos professores. Com isso, descobriu-se uma grande quantidade de faltas, não de todos os professores, mas de alguns de áreas do conhecimento fundamentais, por exemplo, Língua Portuguesa.
Existia uma descontinuidade de trabalho. Os pais queriam entender como era regida a coisa pública. Depois, pediram que a diretora trabalhasse um pouco as questões legais. O direito, o dever do professor. Estudaram a Lei 8989, que rege o funcionalismo público, trabalharam o regimento das escolas municipais e também fizeram um trabalho em cima do estatuto do magistério. "A partir deste estudo, os pais começaram a não mais olhar o projeto político pedagógico apenas em relação ao que eu dizia. Eles queriam que eu apontasse como a gente ia fazer de fato tudo que estava naquele documento", conta Ana. Ela lembra ainda que a grande discussão no momento era que determinados alunos atrapalhavam a sala de aula e por isso tinham que sair da escola. "Cheguei ao ponto de dizer que negociaria tudo o que eles quisessem, menos tirar aluno."
O que fazer com todo este cenário? Segundo Ana, na época, a perspectiva era de tentar construir um projeto coletivo. Com a verba do Fundo Nacional de Desenvolvimento Educacional (FNDE), a escola decidiu aplicar na formação da equipe escolar. Durante dois anos (1998 e 1999), trabalhou com o Instituto Pichon Rivière, que tem como proposta a formação contínua de profissionais interessados em propiciar um diálogo criativo, crítico e democrático, gerador de mudanças nas pessoas e nos grupos. Mas o que é grupo, como se forma? "Às vezes os mais bonzinhos também acobertam o problema da sala. É uma dinâmica que se estabelece no grupo que permite que determinadas coisas aconteçam e outras não. O trabalho com o Instituto começou desde o agente escolar – a pessoa que limpa a escola – até o diretor", ressalta.
Depois do Pichon, a escola trabalhou com o Vereda, que segue a proposta do educador Paulo Freire, também contratado a partir da pequena verba. "Fazíamos umas entradas com grupos de educadores, depois com educadores, alunos e pais, às vezes só educadores e pais", explica. Já com a Práxis, assessoria educacional, o grupo do Amorim assistiu a um vídeo da Escola da Ponte, experiência educacional portuguesa de 30 anos. "Ficamos encantados com a apresentação do aluno e de como ele era dono do processo da sua aprendizagem. Como dizia que conseguia aprender, e sabia o que ele sabia e o que ele não sabia e o que precisava aprender para mudar de objetivo", diz Ana. Ela lembra que o conselho de escola ficou entusiasmado com a possibilidade de construir um projeto que tivesse essa perspectiva. "Conseguimos escrever um projeto, só que tinha um custo da assessoria. Todos nós bancamos e esses pais levaram o projeto para a secretária de educação da época, Maria Aparecida Perez." Quando visitou a Amorim, a secretária escutou, entendeu e aceitou fazer um projeto piloto na escola. "A gente não sabia muito bem como ia fazer, o que a gente sabia é que tinha como inspiração a Escola da Ponte. Estudamos o trabalho e fomos pensando como a partir dele", conta Ana, que já visitou a escola portuguesa. A única certeza, segundo a diretora, é que precisavam de professores polivalentes.
Roteiros de Vida
O projeto não começou na escola inteira. A assessoria queria começar só com a 1ª série do Ensino Fundamental, mas levariam oito anos para ter o projeto na escola toda. Os pais não aceitaram essa proposta. "Desde o primeiro ano, eu já analisava isso. Você não pode conviver muito tempo com duas escolas", justifica Ana, que acredita ter sido muito sábia a atitude dos pais. "Começamos com os primeiros e quintos anos porque quando as crianças entram na escola a maior parte não está alfabetizada. Foi importante ter estas duas pontas. Quando terminou 2004, já tínhamos mapeado a escola como um todo". Neste primeiro ano não houve tempo para mexer no currículo e foram respeitadas as possibilidades dos professores. Foi incorporado também o trabalho de cultura brasileira que já acontecia extra-aula. "Mas percebíamos que tudo que os professores preparavam era muito pouco para os alunos. Eles podiam muito mais".
Foi um professor, doutor em Lingüística, da Universidade de São Paulo estagiário na Amorim durante um ano, que observando o trabalho da escola, descobriu uma forma de viabilizar o conhecimento das crianças de forma melhor, usando como base todos os livros didáticos sem que houvesse a necessidade de um professor regendo as aulas. Geraldo Tadeu Silva criou os roteiros de pesquisa, usados hoje como base para o ensino da escola e que passam por todas as áreas do conhecimento. As crianças trabalham o tempo todo em grupos de cinco, em que cada aluno desenvolve o objetivo da área do conhecimento que vai trabalhar e tem as atividades de cada objetivo. A maior parte do tempo os alunos trabalham nesta dinâmica. Cada ano tem uma quantidade de roteiros. "Cada criança aqui tem o seu próprio ritmo, sua própria perspectiva de aprendizagem. O que é bacana é que tem um currículo que está posto hoje. A criança busca pelo roteiro onde estão as fontes das informações que vão satisfazer este objetivo. É maravilhoso", ressalta Ana.
A equipe escolar teve que ser otimizada para dar conta da nova dinâmica. Têm educadores que acompanham o trabalho de salão, têm os oficineiros e os tutores, responsáveis por acompanhar um grupo de 15 a 18 alunos durante a semana. Todos os educadores da escola são também tutores, inclusive a diretora. O compromisso da escola é com o conhecimento. Eles observam como estes alunos se organizaram no salão dentro do roteiro, como cada um colocou seus objetivos e os realizou, o que falta e o que não falta fazer e por que. Cabe ao tutor um trabalho pontual e importante. "Tem uma imagem para mim que é muito bonita: quando se tem uma planta pequena e se quer que ela cresça, você coloca um pauzinho do lado dela e amarra. Este pauzinho tem o nome de tutor", compara Ana.
A escola teve muitos casos de rejeição. E ainda hoje muitos alunos saem, mas muitos outros entram por causa do projeto. Para que ele se viabilize e sobreviva, a diretoria não acabou de uma hora para a outra com os antigos valores. No ano passado, foram implementadas oficinas de leitura e escrita e de matemática, por serem uma exigência muito grande da comunidade. "Não posso destruir, tenho que construir a partir de. O que é mais bacana deste projeto é que ele está sendo construído pelas pessoas que estão aqui e a comunidade vai dando um feedback", conta.
A coordenadora de educação do Butantã e Pinheiros, Sônia Regina Lima, destaca a experiência da Amorim como uma prática altamente solidária. "Já não é mais a minha sala, o meu aluno. Uma relação de compartilhar, de companheirismo, de solidariedade que vai além, porque implica no estabelecimento de outros vínculos, além dos tradicionais", justifica. Sônia também destaca o estímulo à descoberta. "Essa questão do desafio é um estímulo para a busca a que nós deveríamos ter sidos submetidos. Com certeza teríamos aprendido muito mais ao longo da nossa vida escolar". Ana concorda e destaca ainda o fato de os educadores da escola serem tão aprendizes quanto os alunos. "Fazemos o roteiro junto com as crianças e, como elas, acabamos sendo pesquisadores. O educador tem que ser alguém que pesquisa o tempo todo. Esse é o roteiro, é a abertura da possibilidade." Ana cita um exemplo de como as coisas funcionam. No semestre passado, foi trabalhado pela tutoria um roteiro chamado "pesquisador". As crianças aprenderam como pesquisar, como procurar em uma enciclopédia. Depois disso, o tutor permitiu que cada tutorando seu escolhesse um tema de pesquisa, um foco que interessava a criança. "O que nós estamos tentando fazer é buscar em cada estudante desta escola a possibilidade de aprender, que ele se encante com esta possibilidade, que veja que pode aprender e não aprende apenas o que o outro manda", justifica a diretora.
Ana Elisa rejeita a idéia de que a Amorim esteja tentando reproduzir o modelo da Escola da Ponte. "Estamos nos valendo desta maravilhosa experiência. Ela parte de pressupostos bastante generalizáveis que a gente pode se apoiar para pensar a nossa realidade, as nossas características e a nossa história. Temos um apoio, a partir dele a gente pode pensar o que tem e como usar isso." Um desafio porque coloca em cheque valores estabelecidos. Mas, segundo Ana, a Amorim Lima tem o que todas as demais escolas públicas municipais têm. Apenas seu projeto a diferencia. "Isso é uma coisa importantíssima para a gente avaliar o que acontece nas escolas", conclui. Para o jovem Natan e seus amigos este "apenas" faz toda a diferença.