REVISTA EDUCAÇÃO – EDIÇÃO 132
Onde as disciplinas se encontram
Muito falado mas pouco executado, o método de ensino interdisciplinar ainda luta para romper a barreira dos preceitos educacionais positivistas; experiências mais radicais estão presentes em algumas escolas brasileiras
Mônica Krausz
Em dois grandes salões da Escola Municipal Desembargador Amorim Lima, no Butantã, zona oeste de São Paulo (SP), crianças da 2ª à 8ª série do ensino fundamental estudam juntas, porém divididas em grupos de cinco da mesma série. Elas seguem roteiros de estudos elaborados com o currículo da escola, a partir de uma perspectiva interdisciplinar, ou seja: apresentam temas que passam por diversas disciplinas ou que utilizam elementos de cada uma delas.
Perto dali, na Escola da Vila, colégio particular construtivista que trabalha com um público de classe média alta, a discussão sobre projetos e questões da interdisciplinaridade chegou a uma metodologia de trabalho que cria uma “disciplina de integração”, ou “Projeto de Integração”, como foi batizado. No município de Cantagalo, no Rio de Janeiro, o Ciep Brizolão 227 João Nicoláo Filho “Janjão” trabalha com projetos interdisciplinares sobre temas transversais, como meio ambiente e racismo, ou atualidades, como eleições e Olimpíadas.
Essas e outras práticas são realmente interdisciplinares? Seus mentores acreditam que sim. Mas o que, efetivamente, caracteriza a interdisciplinaridade? No plano acadêmico, o Brasil assistiu às etapas de conceituação e discussão metodológica a partir da década de 70. Mas, mesmo assim, até hoje muitas das práticas ditas “interdisciplinares” são, do ponto de vista teórico, muito mais próximas do conceito de multidisciplinaridade do que de inter ou transdisciplinaridade. Ou seja, até aproximam disciplinas em torno de um tema, mas não dialogam, não inter-relacionam seus conteúdos e não levam o aluno a estabelecer relações em sua aprendizagem. Ou seja, as discussões acadêmicas em torno da interdisciplinaridade, por mais avançadas que estejam na universidade, ainda estão distantes do cotidiano escolar. Ao menos em igual perspectiva.
Multi, inter e trans
Os conceitos de multi, inter e transdisciplinaridade são distintos e, por vezes, antagônicos em suas propostas e objetivos metodológicos, porém ainda muito confundidos. A multidisciplinaridade pressupõe que várias disciplinas podem ser reunidas; porém, essa reunião não implica nem que elas tenham o mesmo objeto de estudo e tampouco que partilhem qualquer tipo de relação sobre esse objeto. Isto é, na escola os alunos podem estudar a China em geografia, os esportes olímpicos em educação física, o comunismo em história, sem que as disciplinas tenham um planejamento conjunto ou as abordagens metodológicas estipulem conexões entre os temas abordados. Em resumo, a interação entre as disciplinas não é relevante.
“Há apenas a certeza de que existe uma enorme diversidade de temas que uma disciplina sozinha jamais compreenderia”, completa Hugo Monteiro Ferreira, professor de Práticas Pedagógicas da Faculdade de Educação de Vitória de Santo Antão (PE).
No caso do ensino interdisciplinar, dois ou mais campos do saber estão reunidos e voltados para a análise e verificação do mesmo objeto de estudo. Os professores fazem um planejamento conjunto com objetivo de propor discussões que levem os alunos a estabelecer relações entre o que estão pesquisando nas diversas disciplinas em relação a um tema em questão. No trabalho interdisciplinar, uma área enriquece o conhecimento sobre a outra e o resultado é a construção de um saber mais complexo e menos fragmentado, que buscará trazer mais nexos para o estudante, visto que pesquisado e discutido sob diferentes pontos de vista.
Um exemplo disso seria um trabalho conjunto sobre diferentes aspectos da história e da cultura do país que abrigará as Olimpíadas de 2008, envolvendo as disciplinas de educação física, geografia, história e artes, entre outras. A proposta interdisciplinar faria os professores trocarem informações entre e com os alunos, a partir de pesquisas sobre o tema. O princípio metodológico está ligado à idéia de que, nesse processo de mergulho conjunto em um tema, todos participam do aprendizado, ainda que em níveis diferentes, mas havendo um pressuposto de troca.
Já a transdisciplinaridade é um conceito mais amplo. O prefixo trans quer dizer aquilo que está entre, através e além. Nesse sentido, um ensino transdisciplinar não se restringe nem à simples reunião das disciplinas nem à possibilidade de haver diálogo entre duas ou mais disciplinas porque ultrapassa sua dimensão. Faz com que o tema pesquisado passe pelas disciplinas, porém sem ter como objetivo final o conhecimento específico dessa mesma disciplina ou a preocupação de delimitar o que é o seu objeto ou o que é de outra área inter-relacionada. A transdisciplinaridade se preocupa com a interação contínua e ininterrupta de todas as disciplinas num momento e lugar.
Uma notícia sobre as Olimpíadas poderia ser o ponto de partida para uma pesquisa aprofundada sobre os esportes praticados no Brasil, as conquistas olímpicas brasileiras, a história das Olimpíadas, os grandes atletas brasileiros e estrangeiros, os países que já sediaram o evento, a China, a cultura, a história do país que abrigará as próximas Olimpíadas, o custo das passagens para lá China, a economia do país, as diferenças sociais e econômicas entre Brasil e China, enfim, temas que com certeza estão presentes em várias disciplinas, mas que, sob essa óptica, são mais importantes numa abordagem global vistos em fragmentos.
Para o professor Hugo Monteiro Ferreira, cuja tese de doutorado, defendida na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), versa sobre uma experiência transdisciplinar numa escola pública, o conceito do que é multidisciplinar se opõe, em determinado sentido, ao conceito do que é inter e do que é transdisciplinar. A multidisciplinaridade, explica ele, ainda é resultado do paradigma cartesiano-newtoniano, que trabalha com certezas científicas. A inter e a transdisciplinaridade tentam romper com a idéia positivista e trabalhar no campo do pensamento complexo estudado pelo filósofo francês Edgar Morin (1921- ), que reúne, dialoga com, duvida, pesquisa, questiona e constrói conhecimentos que novamente podem ser postos em dúvida porque estão permanentemente em mutação. “Num modelo de ensino inter e transdisciplinar, as disciplinas são postas ao redor de um mesmo objeto e suas situações são cíclicas. Ou seja, as disciplinas não possuem posição de importância uma em relação à outra, porém, em processo de compreensão do objeto, estudam, de um ponto de vista dialógico, aquilo que é objeto do estudo”, explica Ferreira.
O primeiro pensador a definir o ensino transdisciplinar como um grau mais elevado de interdisciplinaridade foi Jean Piaget(1896-1980).
O ensino transdisciplinar, na visão de Jean Piaget, era um grau mais aprofundado do interdisciplinar
Segundo o educador, haveria um momento na história do pensamento humano em que a interdisciplinaridade alcançaria um grau de conexão tão intenso que as disciplinas, para além do diálogo, chegariam a um nível mais elevado de interação. Depois de Piaget, Morin e Cornelius Castoriadis (1922-1997) propuseram, em decorrência de suas reflexões acerca da teoria da complexidade, uma revisão no conceito de ensino que o mundo ocidental adotou a partir das teorias cartesianas e newtonianas sobre a realidade e seus desdobramentos.
Morin rejeita as teorias positivistas que elegeram a razão iluminista como a forma mais legítima de entender e de explicar a realidade. “Ele refuta o discurso redutor das teorias modernas que elegeram a ciência, mais exatamente as ciências naturais, como a única fonte de resposta à questão de o que é a vida”, diz Ferreira.
Para o pensador francês, a transdisciplinaridade propõe que a ciência seja uma forma de explicação da vida, porém não a única nem a mais legítima, visto que a ciência é criação do homem e, por ser criação humana, não pode nem deve estar alheia àquilo que a configura: a sua natureza complexa.
O movimento interdisciplinar
Em Interdisciplinaridade: história, teoria e pesquisa(Papirus Editora), Ivani Fazenda, coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas da Interdisciplinaridade (Gepi) da PUC-SP, relata um pouco da trajetória dos estudos da interdisciplinaridade no Brasil e no mundo. Segundo ela, o movimento da interdisciplinaridade surgiu na Europa, principalmente na França e na Itália, em meados da década de 60, evidenciando o compromisso de alguns professores universitários que buscavam “o rompimento com uma educação por migalhas”, com a organização curricular excessivamente especializada e toda e qualquer proposta de conhecimento que incita o olhar do aluno numa única direção. Um dos principais precursores da interdisciplinaridade foi o filósofo e epistemólogo Georges Gusdorf (1912-2000). Segundo ele, o destino da ciência multipartida seria a falência do conhecimento, pois, na medida em que nos distanciamos de um conhecimento em sua totalidade, estaríamos decretando a falência do humano, “a agonia da nossa civilização”.
As discussões sobre interdisciplinaridade chegaram ao Brasil no final da década de 60. De acordo com Ivani Fazenda, interdisciplinaridade tornou-se, então, palavra de ordem a ser empreendida na educação, uma forma de modismo. A primeira produção significativa sobre o tema no Brasil é de Hilton Japiassu, que publica Interdisciplinaridade e patologia do saber em 1976.
De acordo com Ivani, tanto Japiassu quanto Gusdorf dão indicações detalhadas e ainda atuais sobre os cuidados a serem tomados na constituição de uma equipe interdisciplinar: necessidade do estabelecimento de conceitos-chave para facilitar a comunicação entre os membros da equipe, exigências para delimitação do objeto ou tema a ser pesquisado, repartição de tarefas e partilha de resultados.
Obstáculos e perspectivas
Para Débora Vaz, diretora da Escola Castanheiras, de Santana de Parnaíba (SP), a grande vantagem desta década em relação à de 90 é que agora as escolas estão livres do modismo. “Hoje, olhamos para o conhecimento e vemos que é possível e bom que se favoreça o olhar de um mesmo objeto tendo a contribuição de diversas áreas, mas sabendo e entendendo que não é sempre que isso vai acontecer”, explica.
“Pensamos muito nas escolhas de natureza interdisciplinar, porém temos claro que nem tudo pode ser considerado abordagem interdisciplinar”, acrescenta Débora. No 3º ano do fundamental os alunos estudam quem eram os moradores das serras do entorno de Santana de Parnaíba. “Nesse trabalho, eles lêem gráficos, fazem análises quantitativas do número de indígenas que moravam aqui, mas não o classificamos como interdisciplinar, porque esse trabalho não altera o conhecimento que eles já têm de matemática”, diz. Quando a turma entra no campo das artes para estudar as representações artísticas daquelas nações, isso se altera. “Esse estudo transforma o conhecimento que eles têm de artes e das nações indígenas”, finaliza.
Segundo a diretora, antes de realizar qualquer tipo de planejamento de prática interdisciplinar, os professores tentam responder a uma questão básica: quais são as áreas do conhecimento que contribuirão para o aluno entender melhor esse objeto por diversas ópticas?
Alunos da EMEF Amorin Lima, em São Paulo: experimentação para a busca dos saberes com classes que misturam alunos de idades variadas
Para Débora, as dificuldades no trabalho da interdisciplinaridade ainda estão na formação dos educadores, muito positivista e compartimentadora do conhecimento. “Isso ainda faz com que o próprio professor consiga ver pouco o mesmo objeto de vários lados”, explica. Outro problema, segundo ela, é a falta de investimento na formação de professores em ciências naturais. “O professor tem de buscar conhecimentos desses conteúdos de áreas de pouca cultura no Brasil”, sugere. “Há pouca cultura em física e em química. Fugimos muito dessas áreas: ou sabemos muito pouco, ou generalizamos ou reduzimos”, acredita.
E a terceira dificuldade é a própria forma como o currículo está organizado. “A organização clássica do currículo em x aulas de y disciplinas compromete muito o trabalho com a interdisciplinaridade. O que a gente consegue é, dentro das possibilidades existentes, trabalhar com focos interdisciplinares. Há algumas escolas que rompem com isso num ensino totalmente diferenciado, mas acho que ainda não é a nossa geração que vai viver essa transformação em sua totalidade.”
Ser interdisciplinar
Para a pesquisadora de inter e transdisciplinaridade Cristina Salvador, coordenadora dos cursos de Pedagogia e Formação de Professores da Universidade São Judas Tadeu, em São Paulo (SP), não basta reunir disciplinas em um projeto para ser interdisciplinar. O sucesso da interdisciplinaridade depende de quem trabalha a proposta interdisciplinar. “É preciso ser coerente, humilde e saber se rever. Refletir sobre a sua ação e se renovar. Assim o professor contribui para a construção do próprio conhecimento e do conhecimento do outro.”
As características de um professor interdisciplinar também são descritas por Ivani Fazenda: “O professor interdisciplinar traz em si um gosto especial por conhecer e pesquisar, possui um grau de comprometimento diferenciado para com seus alunos, ousa novas técnicas e procedimentos de ensino. Antes, porém, analisa-os e dosa-os convenientemente”.
Defensora escancarada dessa visão, Ivani acredita que o docente que opta por esse caminho tem maior envolvimento com seu trabalho, mas sofre muitas restrições de ordem institucional. “Seu trabalho acaba por incomodar os que têm a acomodação por propósito”, alerta.
“Se você trabalha na lógica do ‘ou’, você trabalha com exclusão”,diz Cristina Salvador, da Universidade São Judas Tadeu
Os métodos pedagógicos que levam em conta os conhecimentos prévios dos alunos e pressupõem que os alunos constroem seus conhecimentos a partir do que conhecem e da troca com o outro, como o construtivismo, costumam trabalhar bem com a interdisciplinaridade. “É preciso saber de qual conhecimento o aluno já se apropriou para ajudá-lo a superar essa bagagem que ele traz. Dialogar com outras fontes de saber permite reciclar aquilo que você já sabia e se superar”, defende Cristina Salvador, da Universidade São Judas.
Visão abrangente
Uma das vantagens da idéia de interdisciplinaridade é sua opção pela conjunção aditiva “e” – e não pela alternativa “ou”. Por isso, defende Cristina, é inclusiva. “Se você trabalha na lógica do ‘ou’, você trabalha com exclusão. Você tem um bom aluno ou você tem um mau aluno. Você aprende isso ou aquilo. Você exclui. Então trabalhar na lógica do ‘e’ é trabalhar na inclusão. Você tem um aluno que pode ser bom e mau em alguns momentos. Você estuda isso e aquilo, não isso ou aquilo”, completa.
Na opinião da educadora, o mais importante na metodologia interdisciplinar é o olhar. “Na interdisciplinaridade, o educador se permite olhar para outras direções e não fica preso só a um conteúdo específico que pretende ensinar. Vai em busca de outros campos do conhecimento, outras áreas para abastecer o seu próprio campo de conhecimento. Por mais que saiba a respeito de uma coisa, sempre vai ter possibilidade de ampliar o seu campo de conhecimento a respeito dessa mesma coisa.”
Ivani Fazenda resume um pouco da essência da prática do professor que trabalha segundo essa perspectiva: “A metodologia interdisciplinar parte de uma liberdade científica, alicerça-se no diálogo e na colaboração, funda-se no desejo de inovar, de criar, de ir além e exercita-se na arte de pesquisar”.
Para saber mais
– Interdisciplinaridade: história, teoria e pesquisa, de Ivani Arantes Fazenda, Papirus Editora
– Os sete saberes necessários à educação do futuro, de Edgar Morin, Cortez Editora
– Educação e complexidade – Os sete saberes e outros ensaios – Edgar Morin, orgs. Maria Conceição de Almeida e Edgar de Assis Carvalho, Cortez Editora
– Globalização e interdisciplinaridade: o currículo integrado, de Jurjo Torres Santome, Artmed
– O ensino de artes e de inglês, uma experiência interdisciplinar,
de Ana Amália Tavares Bastos Barbosa, Cortez Editora
– Para ensinar e aprender geografia, de Nídia Nacib Pontuschka, Tomoko Lyda Paganelli e Núria Hanglei
Cacete, Cortez Editora
Proximidade máxima
Escolas juntam classes de séries diferentes para trabalhar de forma interdisciplinar
Classes com alunos de várias séries trabalhando em grupos, na EMEF Desembargador Amorim Lima, em São Paulo: trabalho inspirado na Escola da Ponte.
Um modelo de gestão comunitária, inspirado no trabalho da Escola da Ponte, de Portugal. Desde 2004, a EMEF Desembargador Amorim Lima, no Butantã, em São Paulo (SP), vem se reestruturando pedagogicamente de acordo com essa perspectiva.
“Inspirada, porém diferente”, diz a diretora Ana Elisa Siqueira. “Estamos em uma cultura diferente e temos mais do que o dobro de alunos. Mas tínhamos a mesma vontade de mudar o modelo de educação, pois o que havia não atendia ao desejo da comunidade”, explica.
As paredes das salas de aula foram derrubadas. A escola passou a ter dois grandes salões e algumas salas especiais que abrigam biblioteca, informática e a sala da 1ª série, além da sala de oficinas especiais. As turmas de 2ª a 4ª e de 5ª a 8ª séries se dividem em dois grandes salões onde não há mais lousa nem aulas expositivas. Depois da mudança na parte física da escola, iniciou-se um intenso trabalho de reconstrução curricular. “O professor não tem mais uma sala de aula, um grupo de alunos e um quadro-negro. Agora, tem alunos de várias séries, convivendo num mesmo espaço, onde é impossível reger uma aula”, diz. “Então foi preciso ter uma outra perspectiva do trabalho do educador, do trabalho das crianças e da escola como um todo”, conta.
A escola começou, a repensar o currículo. Geraldo Tadeu Souza, doutor em lingüística pela USP, acompanhou durante um ano o trabalho dos professores, observando suas práticas, que naquele primeiro ano foram bastante intuitivas por não haver material didático específico para aquele modelo de escola. “Nesse projeto, os alunos trabalham em grupos de cinco crianças da mesma série, porém no espaço de um salão onde há dezenas de outros grupos da sua e de outras séries, além de professores/tutores polivalentes que acompanham várias crianças de diversos grupos e séries diferentes”, conta Geraldo.
Como a lousa havia deixado de ser o espaço referencial central da sala de aula, os educadores tiveram de propor atividades para atender às demandas dos alunos. Isso significou rever modelos, pois os livros didáticos, por exemplo, pressupõem um trabalho em classe com um único professor ou com professores especialistas divididos por disciplinas.
Depois desse período de observação, Tadeu Souza começou a elaborar roteiros de atividades interdisciplinares que seriam desenvolvidas em cada série. “Com base nos livros didáticos do PNLD escolhidos pela escola, comecei a montar roteiros de atividades”, conta. Hoje, são cerca de 18 roteiros temáticos por série. Cada criança deve cumpri-los em um ano, pois eles contemplam a totalidade do currículo da série.
“Se a criança não conseguir fazer todos os roteiros da 5ª série num ano, ela inicia a 6ª série com os roteiros da 5ª que não conseguiu completar”, conta Ana Elisa. “Lá na 8ª série pode ser que ela tenha vários roteiros atrasados para cumprir, mas nesse caso ela não terá repetido o ano, e sim avançado em seu ritmo”, explica. Hoje esses roteiros estão disponíveis na internet em www.amorimlima.org.br. Toda a comunidade pode consultá-lo e os alunos podem ter conhecimento de tudo o que aprenderão da 1ª à 8ª série do ensino fundamental.
Apenas a 1ª série assiste às aulas em uma sala separada. Isso se justifica, segundo a diretora, pelo fato de os alunos estarem no momento de aquisição da habilidade de ler, fundamental no desenvolvimento dos roteiros temáticos das séries seguintes. Na 2ª série, por exemplo, os roteiros abordam os temas água, ar e fogo, bichos, casa, escola, espaço, família, lazer, terra, medos, percepção, planeta azul, tempo, trabalho, matemática, as quatro operações, dinheiro e números.
No roteiro Escola, a criança trabalhará com português, história, geografia e matemática. Geraldo lembra que, mesmo quando um tema é trabalhado só em uma disciplina, pode usar ferramentas de outras. “Podemos utilizar um tema de história por meio de um texto de literatura infanto-juvenil”, explica. O objetivo dessa abordagem é formar estudantes pesquisadores. Ao final de cada roteiro os alunos preenchem uma ficha de finalização que é a conclusão do trabalho e a ferramenta de avaliação final.
“Trabalhar em grupo não é fazer a mesma coisa ao mesmo tempo. É aprender a trabalhar com, a conviver”, diz Ana Elisa Siqueira, diretora do Amorim Lima
Cada grupo tem cinco estudantes da mesma série, mas cada aluno do grupo trabalha com um roteiro independente dos roteiros dos outros. “Trabalhar em grupo não é todo mundo fazer a mesma coisa ao mesmo tempo. É aprender a trabalhar com, é aprender a conviver”, diz Ana Elisa. A idéia é que os alunos conversem, que se ajudem. O que um está fazendo nesse momento pode ser que o outro já tenha feito ou ainda faça. Os alunos também podem optar por fazer juntos o mesmo roteiro. O pressuposto principal é que todos perfaçam o roteiro em sua integralidade, com diálogo e trocas, sem que haja uma divisão de incumbências, como ocorre normalmente.
Professor polivalente
Outro exemplo de interdisciplinaridade na Rede Municipal de Educação de São Paulo é a EMEF João Pinheiro, na Penha. Lá, os professores polivalentes estão presentes da 1ª a 8ª série. Os professores de 5ª série em diante são especialistas, mas orientam os alunos em todas as disciplinas do currículo, como os polivalentes das séries iniciais. Só artes, inglês e educação física são ministradas por professores especialistas em horários específicos.
De acordo com Marjorie Cortelli, coordenadora pedagógica de 5ª à 8ª série, o trabalho de polivalência iniciou-se na escola há mais de 24 anos com assessoria da Escola Vera Cruz, pioneira no método no Brasil. “Os professores buscaram uma metodologia para combater a retenção, que era muito grande”, lembra. Para isso passaram a estagiar na Vera Cruz.
Marjorie Cortelli, orientadora da EMEF João Pinheiro: material desenvolvido para que o aluno desenvolva os conceitos por meio de pesquisa.
A escola parte da idéia de que o professor trabalha o desenvolvimento de habilidades com os alunos. “Temos um material, composto de fichas de aprendizagem, que é todo diferenciado. Eles não usam o livro didático porque não trabalham dessa forma em que um professor manda abrir o livro e fazer aquilo que está lá. O material é todo formatado para que o aluno vá desenvolvendo os conceitos por meio de pesquisa, com a orientação do professor e apoio dos colegas”, conta Marjorie.
A aula é composta de vários momentos. Num momento principal, chamado de TP (tempo pessoal), sempre que o professor for apresentar um conceito novo, entrega uma ficha com propostas que foram desenvolvidas por professores especialistas para os alunos. Marjorie explica que o TP tem 45 minutos, em que o aluno deve tentar resolver as propostas da ficha entregue. Para isso, ele já sabe que deve consultar as fichas já estudadas, mas que não pode conversar com os colegas. Se tiver dúvidas, se inscreve na lousa para conversar com o professor, que irá orientá-lo e apontar seus erros de percurso. Ao final dos 45 minutos começa o tempo do grupo, em que todos comentam suas descobertas e a forma como chegaram à conclusão de seus trabalhos. Nessa hora, uns contribuem com o aprendizado dos outros, princípio básico das atividades interdisciplinares.
O trabalho com polivalência pode ou não contemplar a interdisciplinaridade, diz Marjorie. Isso dependerá basicamente da atitude do professor. Caso se proponha a orientar os alunos para estabelecer relações entre os conteúdos curriculares, interagir e pesquisar, a polivalência se encaixa na interdisciplinaridade. O processo de planejamento busca explicitar as oportunidades para que isso aconteça. Nas reuniões pedagógicas em que os temas anuais são trabalhados, os professores planejam quais conteúdos darão em cada momento do ano e em que momentos as disciplinas podem ser aproximadas para que uma contribua com as outras.
Segundo a professora Márcia Rodrigues Silva, da 5ª série, o professor polivalente cria um vínculo muito forte com os alunos.
“Conheço todos eles pelo nome, todos me conhecem bem. A interação é muito maior. Em termos pedagógicos, a gente acha que também rende mais por não ter troca de professor, e você pode ter a liberdade de se estender um pouco mais ou um pouco menos num conteúdo sem ficar preso a horários rígidos”, explica. A grande diferença, diz Márcia, é que a polivalência faz o professor estudar e aprender muito mais.
Em São Paulo, recuperação conjunta
Ao mesmo tempo que está implantando um currículo com conteúdo especificado para cada bimestre, série a série, a Secretaria de Estado da Educação paulista iniciou o ano letivo de 2008 aplicando uma recuperação interdisciplinar para os seus 3,6 milhões de alunos de 5ª a 8ª séries e ensino médio.
A recuperação, prevista para acontecer nas primeiras seis semanas de aula, estará focada na revisão e reforço de língua portuguesa e matemática, que serão trabalhadas também nas aulas das outras disciplinas. A medida foi tomada, de acordo com Maria Júlia Filgueira Ferreira, assessora técnica da Secretaria, em função dos baixos índices de desempenho dos alunos em avaliações nacionais e internacionais, e da importância que as duas disciplinas têm para o aprendizado de todas as outras.
Durante esse período de recuperação, professores e alunos utilizam material didático – um jornal para os alunos e uma revista para os professores – criados especificamente para essa atividade.
Maria Júlia acredita que a estrutura do ensino é indutora da fragmentação, pelo fato de ser organizada em disciplinas. Mas a interdisciplinaridade pode acontecer através de uma proposta como essa, em que toda a rede tenta reforçar as competências de leitura e escrita e de raciocínio lógico-matemático por meio das outras disciplinas. Para reforçar as habilidades de leitura e produção de texto foram selecionadas as disciplinas de língua portuguesa, língua estrangeira moderna, artes, educação física, história e filosofia. Já para a competência de matemática foram ligadas as disciplinas de matemática, geografia, biologia, física e química.
Os professores não participaram de um planejamento conjunto, mas o material de apoio foi feito por especialistas com foco na integração entre as disciplinas. De acordo com Maria Júlia, essa é a primeira experiência de interdisciplinaridade planejada e organizada para toda a rede. “Enquanto as outras eram experiências pontuais de algumas escolas, dependendo da criatividade de cada equipe, essa é para toda a rede. Quando você quer resultados em um sistema, tem de intervir no sistema”, diz.
A assessora acredita que se a administração trabalhar um currículo unificado, mas com proposta de pontos de articulação entre as disciplinas, não estará ferindo de morte o conceito de interdisciplinaridade. “É lógico que, se uma escola tem um projeto em que ela desenvolve interdisciplinaridade com sucesso e que atende também às habilidades e às necessidades que estão postas, há um espaço para essa autonomia”, ressalva. “Se a escola souber trabalhar bem com a interdisciplinaridade, vai continuar trabalhando. Mas, caso não tenha essa clareza, se perderá na autonomia. Quem ainda não tem os instrumentos adequados para ser autônomo corre o risco de naufragar”, avalia.
O temor da gestão estadual é que as escolas não consigam direcionar as atividades e, ao final de cada ano letivo, os alunos não tenham aprendido os conteúdos curriculares desejáveis para a série, objetivos essenciais como ensinar a ler, escrever e resolver problemas.
No Rio, orientação comum
Educadora há 25 anos, com experiência em escolas públicas e particulares do Rio de Janeiro, Cássia Ravena, orientadora pedagógica da EM Professor Ewandro do Valle Moreira e do Ciep João Nicoláo Filho “Janjão”, ambas no Cantagalo (RJ), município de 20 mil habitantes, no norte do Estado, vê com otimismo a abordagem da interdisciplinaridade na rede local.
“Felizmente, há um movimento nesse entido. A Secretaria Estadual de Educação enviou orientações curriculares que abordam e aconselham o trabalho terdisciplinar. Foi realizado um curso para coordenadores e orientadores pedagógicos em 2006, e, no início de 2007, as escolas staduais receberam as diretrizes”, relembra.
Hoje, as escolas estaduais trabalham dentro dessa perspectiva na abordagem dos temas ransversais e na pesquisa sobre as questões de atualidades, como eleições e Olimpíadas, por exemplo.
Cássia conta que no ano passado o Ciep “Janjão” trabalhou com o tema do meio ambiente nos ensinos fundamental e médio, tratando de questões como lixo, reciclagem, efeito estufa, entre outros. “Neste ano, pesquisaremos a questão do racismo”, conta. Segundo ela, os alunos estão mais interessados nas aulas e avaliam que fi ca mais fácil entender quando um tema é tratado pelas várias disciplinas de forma conectada. “Eles até participaram de um concurso sobre meio ambiente e venceram”, relata.