GILBERTO DIMENSTEIN
Numa das mais ousadas experiências desenvolvidas atualmente em uma escola pública no Brasil, pais de alunos estimularam a derrubada das paredes das salas de aula. Surgiram, no lugar delas, amplos espaços multidisciplinares. Os alunos se dividem em pequenos grupos, cuja tarefa é, essencialmente, pesquisar e produzir conhecimento, orientados pelos professores das mais diferentes matérias compartilhando o mesmo espaço.
Os grupos circulam por vários ambientes e mesclam aulas de capoeira, teatro, ecologia e jogos com o currículo tradicional de português, estudos sociais, ciências e matemática. O aprendizado não é medido por testes burocráticos, mas pelo desenvolvimento de habilidades e pela capacidade de associação de idéias.
Apesar de contar com o estímulo oficial, não há ali nenhum recurso público extra. Atingiu-se tal ponto de sofisticação devido à ação das famílias e da comunidade em articulação com os educadores. Neste fim de semana, por exemplo, pais, alunos e professores decidiram reunir-se, em torno de uma macarronada, para produzir painéis e embelezar essa escola municipal (Amorin Lima), no Butantã, bairro de classe média da cidade de São Paulo.
Esse laboratório comunitário dá uma extraordinária lição – e talvez a menos importante seja a de pedagogia- aos candidatos à prefeitura paulistana.
O debate sobre a eleição paulistana transmite a impressão de que a cidade está em segundo lugar. A preocupação das elites políticas está centrada no impacto da eleição no cenário federal e estadual.
Nos bastidores, especula-se se o vencedor usaria o cargo apenas como um trampolim para projetos maiores, de curto prazo. Marta Suplicy talvez, quem sabe, viesse a disputar o governo estadual; ganhando nas urnas, José Serra analisaria a possibilidade de dar mais um salto antes mesmo de acabar seu mandato. Paulo Maluf precisaria de palanque para se defender das denúncias cada vez mais avassaladoras da existência de contas bancárias em seu nome no exterior.
Marta e Serra me disseram que pretendem cumprir, se eleitos, o mandato. A ver. É certo, porém, que encaram, em algum grau, a prefeitura como uma passagem, o que, diga-se, é legítimo e compreensível -enfim, faz parte da vida política. Mas vão ter de provar que, se eleitos, vão mergulhar na efervescência de São Paulo, cenário de uma ofensiva comunitária jamais vista na cidade, na qual aquela escola transformada em laboratório é um dos muitos sinais -é uma reação à violência, à pobreza, à degradação urbana, movida pela constatação de que o poder público não irá muito longe sem parcerias.
Disseminam-se associações para cuidar não apenas de bairros mas especificamente de ruas, praças e parques. E até mesmo de árvores e de monumentos. Arquitetos ajudam a embelezar favelas como a Heliópolis. Cansados da feiúra, comerciantes tiram dinheiro do próprio bolso para melhorar as calçadas em frente às suas lojas e bancam intervenções paisagísticas. Construtoras fazem melhorias nas comunidades em torno de seus empreendimentos para não ter obras embargadas, ganhar simpatia ou ter seus imóveis valorizados.
Um dos mais interessantes sinais da reviravolta urbana ocorre na recuperação do centro da cidade, que está visivelmente melhor. Tudo começou com a reação da comunidade e agora se multiplicam ações que (coisa rara no Brasil) agregam vários departamentos dos governos municipal, estadual e federal, além da iniciativa privada.
Alguns dos programas de complementação de renda são resultado de uma engenhosa teia formada por verbas de todos os níveis de governo.
Museus, teatros, cinemas, orquestras, livrarias e espaços culturais desenvolvem programas de inclusão educacional, seja atraindo alunos de escolas públicas, seja formando professores. Pela periferia, multiplicam-se cursinhos pré-vestibulares gratuitos e uma infinidade de projetos de protagonismo juvenil, muitos dos quais na arte, como os voltados para o grafite e para o hip hop.
Como é o centro brasileiro do chamado terceiro setor -não há na cidade uma só grande empresa que não patrocine um projeto comunitário-, São Paulo só poderia ser naturalmente a grande escola de experiências comunitárias do país. É o berço da responsabilidade social das empresas. A Bolsa de Valores de São Paulo, por exemplo, inventou um pregão apenas para investidores drenarem recursos a projetos sociais. Preparam-se, no setor financeiro, linhas de empréstimo a empresas socialmente conscientes.
É profundo o esforço de reciclar mão-de-obra daqui para se adaptar à vocação de serviços, em que moda, culinária, marketing, propaganda, medicina e finanças, entre outros setores, geram excelência e cosmopolitismo.
De acordo com o que acompanho de outras cidades pelo mundo, como Bogotá, Cidade do México, Nova York, Chicago, Boston e Barcelona, é possível dizer que São Paulo é um gerador de experiências, o que a torna referência como laboratório social. Quem não percebe isso simplesmente não conhece a cidade.
A combinação fértil (embora dolorosa) de riqueza humana -afinal, somos o pólo mais importante do capital humano brasileiro- com degradação urbana fez de São Paulo não apenas um desafio mas uma monumental aventura contemporânea.
O fato novo é o nascimento de um sentido de coletividade, de pertencimento. Esse movimento será reforçado se o prefeito não encarar a prefeitura como um meio, mas como um fim; que não queira só “ficar” com a cidade, mas se casar com ela ou, pelo menos, namorá-la profundamente.
PS – Pode-se discutir a eficiência ou validade do CEU como escola, mas não como um centro comunitário em bairros sem equipamentos culturais. Seria péssimo se, numa eventual derrota de Marta, aquele projeto, a exemplo do que ocorreu com escolas desse tipo, entrasse em crise. É o risco que correm planos feitos para servir de marca de um governo e/ou de um governante -mas, nesse caso, isso precisa ser evitado.