A casa da Palavra

A Casa da Palavra

Esta iniciativa integra o Prêmio de Interações Estéticas – Residências Artísticas em Pontos de
Cultura

Projeto coordenado por Priscilla Ermel

Objetivo:
Desenvolver junto ao Ponto de Cultura “Oficinas Culturais Amorim Lima” um trabalho de criação lítero-musical contemporâneo, tendo por fundamento os procedimentos e valores oriundos das culturas de tradição oral.
Isso significa que as ações criativas prescindem de qualquer instrumento de registro grafado ou gravado por meios externos, apoiando-se essencialmente num trabalho de aprendizado, cultivo e desenvolvimento das habilidades da memória oral. Estas habilidades envolvem fundamentalmente a voz-corpo com seus inúmeros tipos de cantos, falas e correspondentes performances expressivas (gestos, danças, teatralização, contação de histórias, rituais…) Também os instrumentos musicais, com suas características sonoras e simbólicas específicas, devem participar do processo criativo, dando suportes rítmicos, melódicos, timbrísticos e harmônicos, ora criando contrapontos, ora compondo um “cenário” propício para determinadas expressões culturais.
Tal como nas sociedades da oralidade, nesta experiência estética, a ação criativa nasce das necessidades individuais e/ou coletivas com base em referências locais da comunidade, podendo-se expandir até onde o horizonte dos desejos e do conhecimento possam ir, desde que seja de maneira significativa, isto é, com real capacidade expressiva e comunicativa.
Neste contexto, as interações estéticas entre a artista residente e o ponto de cultura em questão irá se pautar pelo diálogo criativo e abrangente de repertórios lítero-musicais tendo, como ponto de partida, elementos do cancioneiro popular paulistano, o qual, por sua própria natureza histórica cosmopolita, é especialmente rico em influências estéticas de diferentes culturas, diferentes falas sonoras: portuguesas, árabes, tupi(s), italiana, guarani, francesa, espanholas, inglesas, yorubá, bantu e de outras etnias africanas, … e ainda falas sonoras miscigenadas que já adquiriram personalidades próprias, tais como a caipira, cabocla, caiçara, que se entrelaçam com as regionais: maranhenses, pernambucanas, paraibanas, mineiras e paulistas (do interior) entre outras.
Neste universo sonoro, tipicamente brasileiro, naturalmente podemos criar e recriar formas musicais tais como jongos, sambas, valsas, modinhas, maçambiques, toadas de Bumba-Boi?, candombes, congos, ladainhas, fandangos, batuques, cirandas, choros, maxixes, xotes, marchas, ranchos, frevos, maracatus, modas-de-viola, carurus, catiras, ijexás e também rock, hip-hop, funk e blues. A riqueza das formas musicais que povoam São Paulo é enorme; há inúmeras culturas migrantes e imigrantes em constante movimento de ressignificação, que buscam a expressão de sua identidade através do diálogo com o outro que, às vezes, o escuta e o acolhe.
Nesta perspectiva, o objetivo deste projeto é trabalhar o contexto cultural de cada manifestação lítero-musical que irá surgir no processo criativo das pessoas, grupos e/ou comunidade, colocando o humano como o centro irradiador e receptor de um fazer artístico diferenciado, onde a palavra da música, dos gestos, das letras… enfim, a palavra das atitudes, quando proferida, seja ouvida, respeitada e reverenciada como expressão plena de um poder artístico transformador que todos nós possuímos e devemos cultivar.

Para atingirmos este fim, objetivamos realizar inúmeras interações estéticas através das ‘oficinas da oralidade’, prevendo obter como produtos finais:

  • 1. Construção da Togu’na: A Casa da Palavra dentro do espaço da escola e realização do respectivo ritual de iniciação.
  • 2. Produção coletiva de um livro/CD relatando a experiência da residência artística sob diferentes pontos de vista e de escuta.
  • 3. Produção coletiva de um vídeo documentário sobre o processo criativo das ‘oficinas da oralidade’ e a construção da Togu’na: A Casa da Palavra.
  • 4. Realização de um evento cultural aberto à toda a comunidade, no qual serão compartilhados os processos e resultados do projeto através de:

– vivências e interações estéticas entre os participantes na Togu’na.
– exibição do Vídeo: “A Casa da Palavra”.
– leitura interativa de um livro/CD.

Justificativa:

Introdução
Nas culturas de tradição oral que inspiram este trabalho, a noção de arte se desvanece diante de um cotiano impregnado de “fazeres artísticos”. A música invade praticamente todas as ações – rituais e/ou triviais (cotidianas) – dando e ampliando o sentido de cada gesto vivido. Nesta perspectiva, a arte não é mero entretenimento, mas cultura, em seu sentido pleno, isto é, de cultivo, ação que requer um trabalho contínuo e cuidadoso.
De maneira geral, compreende-se sociedades da oralidade como sendo aquelas que fundam sua existência no conhecimento transmitido de boca a ouvido, de mestre a discípulo por meio da palavra. O próprio conceito de tradição oral tem sido definido como “um testemunho transmitido oralmente de uma geração a outra.” Dessa forma, a idéia de tradição oral abarca a de transmissão oral do conhecimento. No entanto, é importante observar que a transmissão oral refere-se mais ao procedimento, enquanto que o conceito de tradição oral implica num conjunto de valores mais específicos, nos levando à discussão de quando, porquê e como essa transmissão ocorre; que tipo de conhecimentos e realidades ela veicula; quem são, e quais as características de seus transmissores; e também, como uma sociedade se constrói tendo, como alicerce, a palavra.
Referindo-se à tradição oral africana da qual é herdeiro, Hampaté Bâ explicita: “Fundada na iniciação e na experiência, a tradição oral conduz o homem à sua totalidade…” “Lá onde não existe a escrita, o homem está ligado à palavra que profere. Está comprometido por ela. Ele é a palavra, e a palavra encerra um testemunho daquilo que ele é. A própria coesão da sociedade repousa no valor e no respeito pela palavra.”
Essa palavra à qual Hampaté Bâ se refere, trespassa o universo restrito da fala implicando num universo mais amplo de ações e significados propostos pelas sociedades da oralidade. Como assinala Leite , nestas sociedades, “a palavra é, sem dúvida, instrumento do saber, mas sua condição vital lhe garante o estatuto de manifestação do poder criador como um todo, transmitindo vitalidade e desvendando interdependências. Sua capacidade de comunicação possui essência diversa daquela proposta pela escrita.”
Assim, é importante perceber que o que caracteriza as sociedades da oralidade não é simplesmente o fato destas prescindirem da escrita, mas a maneira diferenciada como elas concebem sua própria existência. “A oralidade é uma atitude diante da realidade e não a ausência de uma habilidade.”
Esta atitude revela-se, por exemplo, no fato de a música se inserir em praticamente todos os momentos decisivos da vida destas sociedades. Encontramos música nos processos de preparação da terra, sacralização, semeadura e colheita; na administração, circulação e distribuição dos bens nos mercados e em rituais de troca; nas fases iniciáticas dos processos de socialização (ritos de passagem e de permanência); nos atos que marcam a alteração de papéis sociais (nascimento, casamento e morte); e ainda nas práticas de diagnóstico e cura

A Oralidade no Brasil Contemporâneo
Em mais de vinte anos de atuação artística e pesquisas aqui e no exterior, tenho observado que o Brasil apresenta uma composição única na sua cultura musical onde, aliada às formas contemporâneas de transmissão do conhecimento, mantém-se vivos vários aspectos da tradição oral. Estou convencida de que estes aspectos são exatamente os elementos fundamentais responsáveis pela vitalidade de nossa música.
Esta vitalidade tem sua referência cultural, ancestral e histórica na noção indígena tupi-mondé de ti, a alma, a vida que anima todos os seres vivos, e também na noção negro-africana de força vital, compreendida como uma “energia inerente a todos os seres que faz configurar o ser-força ou força-ser, não havendo separação possível entre as duas instâncias, que, dessa forma, constituem uma única realidade.”
A noção de força vital implica uma capacidade específica de nos relacionarmos com determinada energia universal (e ancestral), de tal forma que as ações sociais devem conseguir materializar sua potencialidade criadora original. Neste contexto, a própria noção de pessoa proposta pelas sociedades da oralidade, não pode ser dissociada da força vital, que é o elemento primordial da existência da pessoa. Enquanto que a palavra, seja ela manifesta em música, fala, gestos,… é considerada como a expressão plena dessa simbiose entre a pessoa e a força vital.
Assim, ao trabalharmos nas “oficinas da oralidade” a dinâmica da palavra e as diferentes formas de apreensão e transmissão oral de um dado conhecimento lítero-musical, estaremos trabalhando este complexo indissociável de conceitos que abrangem a noção de pessoa, força vital e palavra.
Por esta via, acreditamos que a música se transforma numa porta, um portal expressivo sutil e poderoso que pode nos levar à compreensão das diferenças enquanto cria condições singulares para a expressão e construção de talentos e identidades individuais e/ou coletivas, despertando a consciência da sobrevivência, em nossa cultura miscigenada, dessa dimensão vital da música.
Dessa maneira, trazer à tona os inúmeros elementos que compõem estas manifestações sonoras é uma das formas de reatar os laços entre a contemporaneidade da música brasileira e sua ancestralidade africana, indígena, européia e médio-oriental, questionando os elementos da memória oral: sua dinâmica, características, sustentabilidade e diálogo com os atuais processos tecnológicos de criação, registro, seleção e transmissão de informações e saberes.

Interação e Integração com a Dinâmica de Ações do Ponto de Cultura
O plano de trabalho do projeto está fundado no objeto central do Ponto de Cultura “Oficinas Culturais Amorim Lima” que se propõe a desenvolver oficinas culturais e atividades que envolvam a comunidade, incentivando o desenvolvimento de novos talentos a partir da consciência de si e da construção de uma identidade cultural consistente e significativa. Assim, trabalhando tanto na grade curricular acadêmica como no espaço extracurricular, as ações aqui propostas pretendem impulsionar concepções estéticas e expressões culturais já existentes na comunidade a que se destina, bem como propor novas experiências artísticas, compreendidas como “novos caminhos criativos de nos relacionarmos com o mundo”.
Estes “caminhos”, tradicionalmente pisados por inúmeras culturas da oralidade, articulam organicamente em suas manifestações estéticas, as linguagens artísticas da música, dança, teatro, poesia, teatro, literatura oral e artes plásticas. As percepções do mundo sensível, sejam elas sonoras, visuais, tácteis, olfativas ou mesmo palatáveis, se entrelaçam num todo pleno de significados. Não é à toa que nas sociedades da oralidade, ritos de iniciação e festas religiosas sejam acontecimentos múltiplos, envolvendo comidas, vestimentas e ornamentos, performances, músicas, danças, falas e cantos específicos…. enfim, todo um aparato simbólico preciso e precioso que se traduz e se comunica através de elementos que nós denominamos de artísticos.
Dentro desta concepção de arte, todas as questões se cruzam: educação, cultura, identidade, tradição e contemporaneidade. Por exemplo, nos exercícios de percepção e improvisação criativa, iremos aprender que não somente os instrumentos são portadores de mensagens advindas das palavras, como as próprias estruturas musicais são, na maioria das vezes, concebidas a partir das vozes humanas e/ou de seus ancestrais. Assim, a noção de força vital de uma “expressão artística” atravessa a matéria sonora alinhavando-a à sua realidade histórica, à sua origem mítica e à trama de significados que as pessoas, grupos, comunidades lhes conferem.
Num segundo momento do trabalho nas “oficinas”, passamos a compreender como a noção da palavra refere-se a um conjunto de enunciados e atitudes que abarcam praticamente todos os âmbitos da vida. Através de vivências criativas e interações estéticas, poderemos perceber como a força vital inerente a essa palavra remonta ao fato dela estar vinculada às ações cotidianas no momento presente, ao testemunho e à memória; enfim, ações e dizeres que entrelaçam e sustentam a vida em sociedade.
Considerando que o Ponto de Cultura “Oficinas Culturais Amorim Lima” é o único no Brasil que existe dentro de uma escola pública propondo um trabalho cultural que transborda os parâmetros educacionais clássicos da relação professor/aluno para fazer ressoar, na esfera da comunidade de pais, amigos, colaboradores e moradores da região, várias das questões acima mencionadas, prevemos que a nossa residência artística irá colaborar de maneira significativa na “construção de novos paradigmas para a formação e o exercício da cidadania de um ser humano íntegro e integrado – consigo, com o outro, com o meio ambiente.”
Nestes novos paradigmas, a arte é fundamental porque é fundamento. Ela está na base da elaboração do mundo sensível da pessoa. É através da arte que construímos nossa percepção e relação com o mundo externo e também com o nosso mundo interior. Ela é via expressa de expressão do nosso ser, dando-lhe forma, existência, numa dimensão estética que permite a manifestação de um diálogo em níveis profundos do ser. E é importante lembrar que nem tudo o que se manifesta na arte é compreendido pela razão ou pelo intelecto. A arte é experiência, aqui compreendida como iniciação, transformação, ação de atravessar fronteiras.
Neste sentido, pretendemos dar continuidade às preocupações do Ponto de Cultura “Oficinas Culturais Amorim Lima” de inserir as ações rituais em seus contextos culturais e educacionais. Se toda expressão artística envolve diferentes níveis de aprendizagem e desenvolvimento da pessoa – coordenação motora, capacidade de concentração e discernimento, criatividade – a música é especialmente generosa em sua capacidade educacional pois tem a habilidade de fazer confluir diferenças e diferentes, num infinito processo de transformação da matéria sonora. Ela trabalha o sensível diretamente. Assim, a partir dos próprios parâmetros musicais – harmonia, timbre, ritmo, consonância, dissonância e ressonâncias – poderemos trabalhar o humano. Por exemplo, através de exercícios de improvisação, poderemos vivenciar não só importantes questões musicais e estéticas, como também trabalhar aspectos como autodisciplina, respeito, tolerância, capacidade de compartilhar, criar, refletir, ouvir… Vale salientar que a proposta deste ano apresentada pelo Ponto de Cultura é trabalhar a questão ritual das ‘rodas das palavras’: rodas de choro, de samba, de capoeira; rodas em torno do fogo, da comida; rodas de dança, de brincadeiras; rodas de prosa e conversas. Dentro desta dinâmica, nosso projeto se insere organicamente, colaborando na dissolução da relação palco-platéia, artista-público, reconstruindo outros espaços de expressão artística, outras possíveis relações e hierarquias da palavra.
Ainda em sintonia com as propostas das “Oficinas Culturais Amorim Lima” que buscam novos paradigmas culturais na educação, propomos refletir como a idéia da música enquanto forma artística criada por uma categoria específica de trabalhadores – os artistas – torna-se restritiva e insuficiente na elaboração de uma atitude criativa frente às demandas do mundo contemporâneo. Durante todas as atividades do projeto poderemos aprender, com as sociedades da oralidade, outras dimensões fundamentais da estética e da arte. Por exemplo, entre os Dogon do Mali, não existe a idéia de forma musical. Toda e qualquer “música” vem associada à inteligibilidade da mensagem proferida; e também ao contexto em que é proferida, à performance de seus intérpretes, à classe de idade, gênero e papel social vivido pela pessoa que a produz, seja na comunidade, seja individualmente, sempre num momento determinado. Fora desse contexto, a “música” deixa de existir como tal, transformando-se num ruído indesejável e ameaçador.
Como afirma H. J. Koellreutter, “só um conhecimento vivido das culturas não-ocidentais e originárias, isto é, um verdadeiro ‘diálogo das civilizações e culturas’, permite dar resposta às indagações de hoje, em escala planetária, integradora. Permite realizar a grande reviravolta cultural necessária, tornando relativo o que se convencionou chamar ciências e artes, situando as duas áreas no contexto infinitamente mais vasto de uma sabedoria, na qual nossas relações com a natureza não são apenas de manipulação e conquista, mas de amor e participação; uma abordagem em que o relacionamento de um com o outro e com a sociedade não é o de um individualismo, mas de comunidade, onde nossas ligações com o futuro não são definidas por simples extrapolação do presente e do passado, mas por ruptura, superação e transcendência: a criação de um futuro realmente novo”.
Para finalizar, observamos três pontos fundamentais que temos em comum com a dinâmica do Ponto de Cultura “Oficinas Culturais Amorim Lima” e que irão orientar a nossa residência artística:

  • Compreensão da arte e da educação como um processo que ocorre em diferentes camadas do ser. Um ser cultural, que apesar de estar vivendo num espaço coletivo, está sendo “construído” enquanto pessoa (no sentido dado pelas sociedades da oralidade).
  • Compreender que a identidade de uma pessoa, de um aluno, de uma escola, de uma comunidade, de um país, de uma família, é construída no cotidiano, na elaboração de determinados valores que irão nortear suas existências.
  • Ter a criação, isto é, o cuidado, como elemento prioritário em qualquer projeto cultural, artístico e/ou educativo, onde e quando a relação entre criar e cultivar – seja uma planta, seja uma canção – deixe de ser metafórica para expressar uma atitude criativa real que nasce das histórias pessoais individuais e coletivas.

Plano das Atividades

1. Oficinas da Oralidade:

As oficinas serão ministradas pela artista residente que promoverá diferentes linguagens de interação estética, sempre com grupos de até vinte pessoas. Estas interações são propostas a partir de exercícios de criação e improvisação lítero-musicais, que podem se desdobrar em pequenas encenações, contação de histórias, danças, expressões visuais e plásticas, além das expressões musicais propriamente ditas. O conteúdo será definido tendo como referência a bagagem de cada participante aliada às contribuições da própria artista com base em suas pesquisas etnomusicológicas e produções artísticas.

Seguindo sugestão do próprio Ponto de Cultura as oficinas serão ministradas para duas turmas: alunos da 1ª série e alunos da 5ª série, em grupos de até 20 (vinte) participantes, perfazendo um total de 200 (duzentas) crianças e pré-adolescentes. A duração dos encontros será de 1h 30 minutos. Os encontros estarão inseridos na grade curricular e acontecerão no primeiro semestre de 2009. Nesta conformação, a artista estará em contato direto com cada grupo, observando pequenos intervalos de três ou quatro dias entre cada encontro. Essa frequência possibilita a realização da proposição central do projeto, ou seja, trabalhar a expressão da oralidade com base na memória (afetiva, intelectual, cultural,…). Este exercício da memória é a pedra fundamental deste tipo de processo criativo que, como uma planta, precisa ser regularmente regado e cuidado para manter o seu frescor.
Além destes grupos, as oficinas serão ministradas também para um outro grupo formado pela comunidade abrangente, obedecendo a mesma lógica de frequência de encontros, com a diferença do perfil dos participantes e no horário noturno das 19:00hrs. No caso, poderão participar famílias inteiras e pessoas de diferentes idades, desde que estejam envolvidas e motivadas pela proposta.
Em nenhum dos casos é necessário que o participante tenha, como pré-requisito, qualquer formação ou habilidade artística, pois o objetivo é trazer à tona talentos e/ou saberes nem sempre prestigiados socialmente, e desenvolver, durante as oficinas, as potencialidades musicais, poéticas e performáticas de cada pessoa e/ou do grupo como um todo.
No decorrer do processo, além das expressões musicais – vocais e corporais – é previsível (e desejável) que alguns instrumentos musicais, bem como outros meios expressivos tais como teatro de bonecos, autos populares, histórias, etc… sejam incorporados no processo, ampliando o espectro estético-cultural dos elementos significativos do trabalho.

As oficinas da oralidade estão projetadas em três fases distintas:

  • aprendizado e transmissão de saberes tradicionais; exercícios de improvisação e vivências estéticas; compreensão e desenvolvimento do processo criativo com base na oralidade.
  • reflexão crítica dos processos de registro e difusão de saberes no mundo globalizado: a escrita, os aparatos tecnológicos digitais (vídeos, áudios, edições não-lineares, hipermídias) e os meios de difusão e reprodução dos saberes (ações de criar, compartilhar, copiar, comprar, vender, dar e receber).
  • exercícios de compartilhar os processos criativos e seus resultados: a) trabalho conjunto com as oficinas de linguagem audiovisual (produção do DVD); b) registro gráfico (em palavras, desenhos, pinturas, gravuras, …) das experiências artísticas vividas na 1ª fase das oficinas com vistas à criação do Livro-CD; c) compartilhar resultados durante o Evento Final do projeto.

2. Produção do Livro/CD
O primeiro produto previsto é um livro-CD com registro da experiência estética vivenciada, apresentada sob diferentes pontos de vista e de escuta. Para tanto, durante os primeiros três meses das oficinas da oralidade, a artista residente irá escrever o ‘diário da Casa da Palavra’. Escrito de maneira fluida, como se fosse um ‘diário de campo’, nestas notas diárias serão assinalados vários aspectos pertinentes e fundamentais do processo de aprendizagem, criação e transmissão do conhecimento que a artista considere relevante. Este diário, escrito fora do contexto das oficinas, tem como objetivo servir de base (e/ou referência) para o Livro/CD a ser elaborado, coletivamente, no final do processo.
No final do projeto, este livro-CD poderá (ou não) ser impresso e multiplicado em vários exemplares. O importante é que um exemplar fique no Ponto de Cultura para ser lido, relido e escutado com um olhar e uma audição distanciada, no tempo e no espaço, e outros sejam compartilhados com seus criadores e comunidade participante.
Também acreditamos que este produto possa servir, num futuro próximo, como uma interessante referência pedagógico-artística para os desafios da implantação dos ‘cursos de música’ que entrarão em vigor nos próximos anos como obrigatórios no ensino fundamental.

3. Produção do Vídeo “A Casa da Palavra”
No decorrer das oficinas da oralidade, projetamos, neste grupo, a discussão e inclusão de temas referentes às formas de compartilhar o conhecimento no mundo contemporâneo. Nesta fase do projeto, as questões de registro – grafado e/ou gravado – bem como os meios de difusão dos saberes e criações artísticas serão redimensionados em função das experiências vividas nos processos criativos apoiados unicamente na memória oral (individual e coletiva).
Paralelamente, iniciaremos uma outra oficina denominada ‘a palavra compartilhada’, voltada para a construção do discurso audiovisual, com base em conceitos e metodologia da antropologia compartilhada.
Esta oficina será oferecida para um novo grupo de participantes (alunos da 6ª a 8ª séries e comunidade), que não tenham participado das oficinas da oralidade . Este outro grupo será o responsável pela realização de um vídeo documentário sobre os processos criativos vividos por seus colegas nas oficinas da oralidade e as diferentes etapas de construção da Togu’na, A Casa da Palavra.
Para tanto, trabalharemos metodologias de pesquisa de campo, pois este grupo irá realizá-la, e também questões específicas da linguagem audiovisual: técnicas de gravação, edição não-linear, produção de um vídeo e sua difusão em situações presenciais (exibições públicas) e/ou virtuais (por exemplo, na rede da internet).
Este grupo da oficina ‘a palavra compartilhada’ irá trabalhar diretamente na realização do vídeo, utilizando recursos técnicos e econômicos tanto do Ponto de Cultura, quando do atual projeto, cumprindo as seguintes etapas: pesquisa, roteiro, pré-produção, gravações, decupagem, edição e finalização.

4. Togu’ná, a Casa da Palavra
“Continuávamos andando por Songo quando Indègenê me mostrou aquele que parecia ser o lugar por excelência de encontro e repouso das palavras acaloradas. Sombreado, esse abrigo avarandado era extremamente convidativo e aconchegante. Seu teto baixo nos obrigava baixar a cabeça, num gesto de humildade. Somente quando já estávamos lá dentro, com a vista acostumada à luminosidade da sombra, pudemos discernir os olhares e sorrisos tênues dos anciões presentes. Saudações. Estávamos dentro da Togu’ná, a Casa da Palavra Dogon.”

A Construção

Dentro de nosso projeto de interação estética, visualizamos duas atividades de maior abrangência que irão mobilizar a escola e a comunidade como um todo, pois demandam esforços e participação em diferentes níveis de envolvimento e compreensão do profundo significado da palavra em sociedades da tradição oral.
A primeria refere-se à construção de uma Casa da Palavra. Inspirada na Togu’ná, a Casa da Palavra Dogon, esta casa será erguida num local interno da escola, respeitando vários aspectos rituais e simbólicos de sua existência. De maneira resumida, A Casa da Palavra é, na sociedade negro-africana Dogon (Mali), o lugar privilegiado da fala . Nesta sociedade, o dizer e o ouvir, o som e o silêncio assumem, no cotidiano, uma importância fundamental. Não se fala a esmo, não se dirige a palavra a qualquer um, de qualquer jeito, em qualquer hora. Há uma herarquia no dizer, um cuidado, pois a vida é sustentada pela palavra proferida. E é esta dimensão de responsabilidade, de comprometimento, de compreensão do respeito pelo poder criador e transformador da palavra bem dita que pretendemos trabalhar na Casa da Palavra.
Tradicionalmente, a Togu’na é o lugar de encontro entre as pessoas vivas e seus ancestrais. A cobertura da Casa da Palavra é feita com um material semelhante ao nosso sapé; são pequenos feixes de madeira que simbolizam, em camadas, as várias gerações de ancestrais que ali habitam. Numa determinada hora do dia, quando os anciões se reúnem, a presença destes ancestrais é reverenciada. Também não se profere qualquer palavra dentro deste espaço sacralizado em rituais de iniciação e permanência. Cuida-se do que é dito, cuida-se da conversa, ouve-se e fala-se com respeito pela Palavra.
Assim, durante o processo de construção da nossa Togu’na A Casa da Palavra, pretende-se trabalhar todos estes valores civilizatórios que herdamos das sociedades negro-africanas, e que também reconhecemos em outras sociedades de tradição oral (indígenas e orientais).

Ritual de Iniciação
Num segundo momento, pretendemos propor um ritual de iniciação a todos os alunos e comunidade, população com a qual o Ponto de Cultura “Oficinas Culturais Amorim Lima” realiza sua dinâmica de trabalho. Trata-se de um ritual aparentemente simples, no qual, um pequeno grupo aprende, antes de entrar na Togu’na, seu significado a partir do ‘mito de origem da Palavra Dogon’ (e respectivos elementos simbólicos: água, fogo, tear e ferreiro.) Aprendemos também que estes elementos fazem parte da herança negro-africana presente na cultura brasileira.
Em seguida, obedecendo a determinados gestos simbólicos e atitudes rituais necessárias, as pessoas do grupo entram e vivenciam o silêncio, a escuta. Este pequeno ritual, aparentemente banal, pode ser uma experiência intensa e profunda, que redimensione o próprio ato de falar e de ouvir (o outro e a si mesmo).

5. Evento Final: Compartilhando Experiências de Criar e Cultivar Saberes
Como última etapa de nossa residência, propomos um evento final que, como uma grande “roda da palavra” – tema central a ser elaborado pelo Ponto de Cultura “Oficinas Culturais Amorim Lima” em 2009 – faça confluir, num só momento e espaco, todo o movimento e resultados dos processos criativos desenvolvidos durante os seis meses de interações estéticas.
Para tanto, serão realizadas, dentro da Togu’na, A Casa da Palavra, uma série de vivências estéticas no formato de “rodas da palavra” – rodas de música, de poesia, de performances – como se estivéssemos num sarau, quando e onde o espectador é também ator-participante. É neste espaço e momento que os resultados da oficinas da oralidade serão compartilhados com os outros colegas da escola, amigos, familiares e comunidade da região.
Os conteúdos trabalhados, tais como “a música do corpo e o corpo da música”, “ o timbre e a personalidade do som”, “diálogo e ressonâncias”, “paisagens sonoras e o imaginário nos cantos, contos, mitos e provérbios de sociedades da oralidade” serão apresentados em suas diversas formas expressivas.

O objetivo deste último grande encontro é reafirmar as palavras de Hampaté Bâ: “O testemunho, seja escrito ou oral, no fim não é mais que testemunho humano, e vale o que vale o homem.”